Desdolarização do comércio internacional: avanços, desafios e efeitos para o real

Desdolarização do comércio internacional

Imagine acordar amanhã e descobrir que o dólar americano perdeu sua posição de moeda dominante no comércio mundial. Parece ficção científica? Para muitos analistas e formuladores de política, essa possibilidade tem ganhado contornos cada vez mais reais. Porém, entre o discurso inflamado sobre o fim da era do dólar e a realidade dos mercados financeiros globais, existe um abismo que poucos ousam reconhecer. Este artigo mergulha fundo na complexa dinâmica da desdolarização, desvendando por que, apesar de todos os sinais e movimentos recentes, apostar contra a supremacia do dólar ainda pode ser um erro caro demais para qualquer trader ou investidor sério.

1. O Fim da Era do Dólar ou Apenas Mais um Capítulo?

1.1. Contextualização do debate sobre desdolarização no cenário geopolítico atual

O mundo financeiro vive um momento de particular tensão. Entre conflitos no Leste Europeu, disputas comerciais sino-americanas e realinhamentos geopolíticos no Oriente Médio, uma questão tem dominado as discussões em salas de reunião de bancos centrais e mesas de trading: estamos testemunhando o início do fim da hegemonia do dólar americano?

As evidências de uma busca por alternativas ao dólar se multiplicam diariamente. Países como Rússia, China, Irã e mesmo parceiros tradicionais dos Estados Unidos têm explorado formas de reduzir sua dependência da moeda americana. Essa tendência não é apenas retórica política - ela reflete uma mudança estrutural nas relações de poder global que merece nossa atenção analítica.

1.2. Definição de desdolarização e sua relevância para o Brasil

A desdolarização refere-se ao processo gradual de redução do uso do dólar americano em transações comerciais internacionais, reservas cambiais de bancos centrais e como moeda de denominação para contratos e investimentos. Para o Brasil, essa questão assume contornos especialmente importantes, considerando nossa posição como exportador de commodities e nossa crescente integração comercial com economias emergentes.

O país enfrenta um dilema estratégico fundamental: como navegar entre a realidade atual de dependência do dólar e as oportunidades que podem surgir de um mundo financeiro mais multipolar? A resposta a essa pergunta pode determinar não apenas o futuro do real brasileiro, mas também nossa posição competitiva no comércio global nas próximas décadas.

1.3. Tese central: ceticismo fundamentado sobre a substituição efetiva do dólar no curto e médio prazo

Aqui reside o cerne de nossa análise: embora o movimento de desdolarização seja real e mensurável, a probabilidade de uma substituição efetiva do dólar como moeda dominante nos próximos 5 a 10 anos permanece baixa. Essa perspectiva não nasce de complacência ou viés pró-americano, mas de uma avaliação fria dos obstáculos estruturais que qualquer moeda alternativa enfrentaria - obstáculos que a história financeira nos ensina serem quase intransponíveis no curto prazo.

2. A Hegemonia do Dólar: Fundamentos de uma Supremacia Duradoura

2.1. Bretton Woods e a consolidação histórica do dólar americano

Em julho de 1944, enquanto a Segunda Guerra Mundial ainda devastava o mundo, 44 nações reuniram-se no Mount Washington Hotel, em Bretton Woods, para redesenhar o sistema monetário internacional. O acordo estabeleceu o dólar como moeda de referência global, inicialmente lastreada em ouro a 35 dólares por onça. Mesmo após o fim do padrão-ouro em 1971, a infraestrutura criada permaneceu intacta e se fortaleceu.

Essa decisão histórica não foi acidental. Os Estados Unidos emergiram da guerra como a única potência industrial intacta, controlando cerca de 50% da produção mundial e possuindo as maiores reservas de ouro do planeta. O dólar tornou-se, assim, não apenas uma moeda, mas um símbolo de estabilidade em um mundo devastado - uma posição que se consolidou ao longo de oito décadas.

2.2. Pilares da dominância atual: liquidez, estabilidade e infraestrutura financeira

A supremacia atual do dólar sustenta-se em três pilares fundamentais que resistem ao tempo. Primeiro, a liquidez incomparável de seus mercados: segundo dados do BIS (Banco de Compensações Internacionais), o mercado de títulos do Tesouro americano movimenta diariamente mais de 500 bilhões de dólares, permitindo que investidores comprem e vendam grandes volumes sem impactar significativamente os preços.

Segundo, a percepção de estabilidade institucional dos Estados Unidos. Apesar de todas suas imperfeições políticas, o país mantém um Estado de Direito robusto, instituições independentes e políticas econômicas relativamente previsíveis. Terceiro, a infraestrutura financeira global foi construída ao redor do dólar ao longo de décadas, criando um efeito de rede que torna custoso migrar para alternativas.

2.3. O sistema SWIFT e a arquitetura financeira global centrada no dólar

O SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) processa cerca de 42 milhões de mensagens diárias entre mais de 11.000 instituições financeiras em 200 países. Conforme relatórios da própria organização, aproximadamente 60% dessas transações envolvem dólares, consolidando ainda mais a posição da moeda americana como facilitadora do comércio global.

Essa arquitetura não é apenas técnica - ela é profundamente política. O controle americano sobre o SWIFT permite aos Estados Unidos impor sanções econômicas efetivas, como demonstrado nos casos do Irã e da Rússia. Paradoxalmente, esse mesmo poder coercitivo tem se tornado um dos principais catalisadores da busca por alternativas, criando uma dinâmica fascinante de ação e reação no sistema financeiro global.

2.4. Números que demonstram a supremacia: participação nas reservas globais e transações

Os dados do FMI são inequívocos: o dólar representa aproximadamente 59% das reservas cambiais globais, conforme o último relatório COFER (Currency Composition of Official Foreign Exchange Reserves). No comércio internacional, cerca de 40% das transações são denominadas em dólares, mesmo quando os Estados Unidos não são parte da transação. No mercado de câmbio, segundo a pesquisa trienal do BIS, o dólar está presente em 88% de todas as operações.

O gráfico a seguir ilustra visualmente a dominância absoluta do dólar nas reservas cambiais globais, demonstrando por que qualquer mudança estrutural enfrentará resistência significativa.

Composição das Reservas Cambiais Globais por Moeda

3. Catalisadores da Desdolarização: Por Que o Movimento Ganhou Força

3.1. Tensões geopolíticas e o uso do dólar como arma econômica

A "weaponização" do dólar tornou-se uma realidade incontornável da geopolítica moderna. As sanções impostas à Rússia após 2014, intensificadas drasticamente em 2022, demonstraram como o controle do sistema financeiro global pode ser usado como instrumento de política externa. Países foram literalmente cortados do sistema bancário internacional overnight, uma demonstração de poder que não passou despercebida por outras nações.

Essa demonstração de força teve um efeito colateral não antecipado: acelerou dramaticamente a busca por alternativas entre nações que temem sofrer tratamento similar no futuro. Mesmo aliados tradicionais dos Estados Unidos começaram a questionar os riscos de uma dependência excessiva do sistema financeiro americano - uma preocupação que se reflete nas políticas de diversificação de reservas observadas globalmente.

3.2. Ascensão de potências emergentes e busca por autonomia financeira

A China representa o caso mais emblemático dessa tendência. Como segunda maior economia mundial, com um PIB de aproximadamente 17,7 trilhões de dólares, Pequim possui os recursos e a motivação necessários para desafiar a ordem estabelecida. O país tem promovido ativamente o uso do yuan em seus acordos comerciais, especialmente com parceiros da Iniciativa do Cinturão e Rota, que abrange mais de 140 países.

Outras potências emergentes seguem trajetórias similares, cada uma com suas particularidades. A Índia tem explorado pagamentos em rupias com parceiros comerciais, enquanto o Brasil tem ampliado o uso do real em transações com países sul-americanos. Essas iniciativas, embora ainda modestas em escala global, representam uma mudança estrutural importante que não pode ser ignorada.

3.3. Impacto das sanções econômicas como acelerador da desdolarização

As sanções funcionam como um poderoso incentivo à inovação financeira - uma lição que a história nos ensina repetidamente. Países sob pressão econômica desenvolvem rapidamente mecanismos alternativos de pagamento e comércio. O Irã, por exemplo, estabeleceu sistemas de escambo sofisticados para continuar exportando petróleo apesar das restrições americanas, demonstrando que a criatividade financeira floresce sob pressão.

A Rússia acelerou dramaticamente seus esforços de desdolarização após 2022. Segundo dados do Banco Central Russo, o país reduziu sua participação em dólares nas reservas cambiais de cerca de 45% em 2018 para menos de 15% atualmente, substituindo-os por ouro, euros e yuans. Essas mudanças, embora forçadas, criam precedentes que outros países observam atentamente - e alguns começam a emular preventivamente.

3.4. Inovações tecnológicas: CBDCs e sistemas de pagamento alternativos

As Moedas Digitais de Banco Central (CBDCs) representam uma fronteira tecnológica que pode facilitar significativamente a desdolarização. A China lançou o yuan digital (e-CNY) em escala piloto, permitindo transações internacionais sem passar pelos canais tradicionais do sistema bancário. Os resultados iniciais, embora limitados, são promissores e atraem atenção global.

Outros países experimentam soluções similares com urgência crescente. O Banco Central Europeu desenvolve o euro digital, enquanto o Brasil avança com o real digital (Drex). Essas tecnologias podem, teoricamente, permitir transações internacionais diretas entre bancos centrais, bypassando completamente o sistema baseado em dólar - uma possibilidade que mantém os formuladores de política americanos atentos.

4. Avanços Concretos na Desdolarização Global

4.1. Acordos bilaterais em moedas locais: casos práticos e volumes

Os números começam a mostrar resultados tangíveis que merecem análise cuidadosa. O comércio bilateral entre Brasil e China atingiu recordes históricos, superando 180 bilhões de dólares anuais, com uma parcela crescente sendo liquidada em reais e yuans. Conforme relatórios do Banco Central do Brasil, aproximadamente 15% do comércio bilateral foi realizado em moedas locais em 2024, comparado a menos de 5% em 2020 - um crescimento impressionante, mesmo que ainda minoritário.

A Argentina e o Brasil estabeleceram mecanismos para liquidar transações comerciais diretamente em pesos e reais, eliminando a necessidade de conversão para dólares. Embora o volume ainda seja modesto - cerca de 2 bilhões de dólares anuais segundo dados oficiais - a tendência é clara e acelerada, especialmente em setores como agronegócios e energia.

4.2. Iniciativas do BRICS+: do discurso à implementação

O bloco BRICS+ tem avançado significativamente além da retórica em suas iniciativas de desdolarização. O Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS aumentou drasticamente os empréstimos denominados em moedas locais, atingindo 30% de seu portfólio total em 2024, conforme relatórios oficiais da instituição - um salto considerável comparado aos 10% de 2020.

Mais significativo ainda é o desenvolvimento de um sistema de pagamentos interbancário entre os países membros. O mecanismo permite transferências diretas sem intermediação do SWIFT, embora ainda opere em volumes relativamente pequenos comparados aos canais tradicionais. Contudo, a infraestrutura está sendo construída metodicamente, e o potencial de crescimento é substancial.

4.3. Sistemas de pagamento alternativos ao SWIFT: CIPS, SPFS e outros

O CIPS (Cross-Border Interbank Payment System) chinês processou mais de 3 trilhões de dólares em transações em 2024, um crescimento de 50% em relação ao ano anterior, segundo relatórios oficiais do People's Bank of China. Embora ainda pequeno comparado ao volume do SWIFT - que processa cerca de 150 trilhões de dólares anuais - o crescimento é impressionante e constante.

O SPFS russo, apesar das limitações impostas pelas sanções, conecta mais de 400 instituições financeiras e processa cerca de 20% das transações domésticas do país. Mais importante, conseguiu estabelecer conexões com sistemas de pagamento de países como China, Irã e Índia, criando uma rede alternativa que, embora ainda limitada, demonstra viabilidade técnica.

4.4. Crescimento do yuan chinês como moeda de reserva e comércio

O yuan representa atualmente cerca de 2,7% das reservas cambiais globais, conforme dados do FMI - um crescimento modesto, mas consistente desde os 1,1% de 2016. No comércio de commodities, sua participação tem crescido mais rapidamente, especialmente em transações envolvendo países da Ásia e África, onde já representa cerca de 8% das transações em alguns setores. 

A evolução temporal da participação do yuan demonstra um crescimento lento mas persistente, ilustrando tanto o progresso quanto as limitações da internacionalização da moeda chinesa.

Evolução da Participação do Yuan nas Reservas Globais

A China estabeleceu contratos futuros de petróleo denominados em yuan na Shanghai International Energy Exchange, oferecendo uma alternativa aos benchmarks tradicionais em dólar. Embora ainda represente uma fração pequena do mercado global - cerca de 7% segundo dados da própria bolsa - o volume tem crescido consistentemente, especialmente entre refinarias asiáticas.

4.5. Dados recentes sobre redução da participação do dólar no comércio global

Relatórios do FMI indicam uma redução gradual, mas perceptível, na participação do dólar nas reservas cambiais globais. A moeda representava cerca de 71% das reservas em 2000, caindo para os atuais 59% - uma redução de 12 pontos percentuais ao longo de duas décadas. Embora a mudança seja lenta, a tendência é inequívoca e representa centenas de bilhões de dólares em termos absolutos.

No comércio internacional, dados preliminares sugerem que a participação do dólar em transações envolvendo países emergentes caiu de cerca de 50% em 2010 para aproximadamente 45% em 2024. A redução é modesta em termos percentuais, mas representa trilhões de dólares em volume absoluto - uma mudança estrutural que merece atenção séria.

5. Os Obstáculos Monumentais à Desdolarização Efetiva

5.1. Liquidez incomparável dos mercados em dólar

A diferença de liquidez é brutal e fundamental para compreender por que a desdolarização enfrenta resistências tão significativas. O mercado de títulos do Tesouro americano possui um volume diário médio de negociação de mais de 500 bilhões de dólares, sendo 10 vezes maior que o segundo maior mercado de títulos governamentais do mundo. Essa profundidade permite que até mesmo transações multibilionárias sejam executadas sem impacto significativo nos preços - uma característica insubstituível para grandes investidores institucionais.

Compare isso com mercados alternativos: o mercado de títulos chineses, embora grande em termos absolutos, possui restrições significativas de acesso para investidores estrangeiros. O mercado europeu é fragmentado entre diferentes países e marcos regulatórios, reduzindo sua eficiência. Nenhuma alternativa oferece a combinação única de tamanho, acessibilidade e estabilidade dos mercados americanos.

5.2. Confiança institucional e estabilidade jurídica dos EUA

Por mais que se critiquem as políticas americanas - e críticas legítimas abundam - o país mantém instituições relativamente robustas e previsíveis em comparação com alternativas globais. Investidores sabem que contratos serão respeitados, que o sistema judiciário mantém independência relativa e que mudanças de governo não alteram fundamentalmente as regras do jogo econômico.

Essa estabilidade institucional é notoriamente difícil de replicar. A China, apesar de seu crescimento econômico impressionante e competência técnica, ainda enfrenta questões sobre transparência e previsibilidade de suas políticas - especialmente após mudanças regulatórias abruptas em setores como tecnologia e educação. A Europa, embora institucionalmente sólida, carece da unidade política necessária para projetar poder financeiro global de forma coordenada e consistente.

5.3. Efeito de rede: o custo proibitivo da transição

O efeito de rede do dólar cria um círculo virtuoso extremamente difícil de quebrar - uma realidade que economistas comportamentais reconhecem como quase intransponível. Quanto mais ele é usado, mais útil se torna usá-lo. Bancos mantêm reservas em dólar porque outros bancos fazem o mesmo. Empresas precificam em dólar porque seus concorrentes fazem o mesmo. O sistema se auto-reforça constantemente.

Migrar para um sistema alternativo requer coordenação massiva e simultânea entre milhares de instituições globalmente - um desafio logístico monumental. Os custos de transição incluem novos sistemas de TI, treinamento de pessoal, risco operacional durante a migração e custos de oportunidade significativos. Pior ainda, quem migra primeiro assume riscos desproporcionais sem garantia de que outros seguirão, criando um problema clássico de dilema do prisioneiro.

5.4. Ausência de substituto com características equivalentes

Esta é talvez a barreira mais fundamental: não existe hoje uma única moeda que combine todas as características necessárias para substituir o dólar. Uma moeda global dominante precisa de liquidez profunda, estabilidade política de longo prazo, mercados financeiros altamente desenvolvidos, ausência de controles de capital restritivos e aceitação global ampla.

O yuan chinês possui tamanho econômico impressionante, mas mantém controles de capital significativos e limitações de transparência. O euro tem instituições sólidas e mercados desenvolvidos, mas carece de unidade política e crescimento econômico dinâmico. Outras moedas são ainda menores ou mais instáveis. Um "cesto de moedas" pode funcionar para certas transações específicas, mas não oferece a simplicidade e eficiência operacional de uma moeda única dominante.

5.5. Histórico de tentativas frustradas de desdolarização

A história financeira está repleta de tentativas malsucedidas de criar alternativas viáveis ao dólar - um padrão que deve nos manter humildes sobre as possibilidades atuais. O SDR (Special Drawing Rights) do FMI foi concebido nos anos 1970 como uma "super-moeda" internacional, mas permanece como pouco mais que uma unidade de conta para operações limitadas entre bancos centrais.

O euro foi saudado como um potencial rival sério do dólar em sua criação, mas sua participação nas reservas globais estagnou em torno de 20% e nunca ameaçou seriamente a dominância americana. Mesmo movimentos regionais enfrentaram dificuldades intransponíveis: a União Monetária Africana, proposta há décadas, permanece um projeto no papel. A ASEAN explorou uma unidade de conta comum, mas abandonou a ideia devido às complexidades políticas e técnicas envolvidas.

6. Impactos Específicos para o Brasil e o Real

6.1. Posição atual do Brasil no movimento de desdolarização

O Brasil tem adotado uma postura caracteristicamente pragmática e cautelosa em relação à desdolarização, refletindo nossa tradicional diplomacia equilibrada. Participamos ativamente de iniciativas multilaterais como o BRICS+ e exploramos acordos bilaterais em moedas locais, mas evitamos cuidadosamente antagonizar diretamente o sistema financeiro americano. Essa abordagem equilibrada reflete nossa posição geográfica e comercial única: somos geograficamente próximos dos Estados Unidos, mas economicamente cada vez mais integrados com economias emergentes.

Segundo o Relatório de Gestão das Reservas Internacionais do Banco Central do Brasil, a instituição tem diversificado gradualmente suas reservas cambiais, reduzindo a participação do dólar de cerca de 80% para aproximadamente 70% nos últimos cinco anos. Essa diversificação, embora modesta, sinaliza uma adaptação pragmática às novas realidades geopolíticas sem movimentos bruscos que possam comprometer a estabilidade.

6.2. Acordos com a China: análise dos resultados práticos

O acordo de swap cambial entre Brasil e China, estabelecido em 2013 e renovado múltiplas vezes, permite transações bilaterais de até 200 bilhões de reais ou 190 bilhões de yuans. Embora subutilizado inicialmente - reflexo das complexidades operacionais e regulatórias - o mecanismo ganhou tração significativa, especialmente após as turbulências geopolíticas recentes aumentarem o interesse por alternativas ao dólar.

Em 2024, conforme dados do Banco Central, aproximadamente 12 bilhões de dólares em comércio bilateral foram liquidados diretamente em reais e yuans, uma cifra significativa embora ainda representando apenas 6,7% do volume total de comércio bilateral de 180 bilhões de dólares. O crescimento, no entanto, tem sido consistente e acelerado: em 2020, essa proporção era inferior a 2%.

6.3. Potenciais benefícios para a economia brasileira

Uma desdolarização gradual e controlada poderia trazer benefícios específicos e mensuráveis para o Brasil. Primeiro, redução significativa dos custos de transação em nosso comércio exterior, especialmente com parceiros emergentes - uma economia que pode chegar a centenas de milhões de dólares anuais. Segundo, menor exposição a choques externos originados de mudanças na política monetária americana, que historicamente causaram volatilidade significativa no real.

Terceiro, fortalecimento potencial do real como moeda regional, especialmente na América do Sul, onde o Brasil já é o parceiro comercial dominante de praticamente todos os países. Esse desenvolvimento poderia reduzir custos de transação regional e aumentar nossa influência econômica. Quarto, maior autonomia na política monetária, com menor necessidade de manter reservas massivas em dólar para garantir estabilidade cambial - recursos que poderiam ser direcionados para investimentos produtivos.

6.4. Riscos e vulnerabilidades do real em um cenário de desdolarização

Contudo, os riscos são igualmente significativos e merecem análise cuidadosa. O real permanece uma moeda de mercado emergente, historicamente sujeita à volatilidade e à percepção de risco dos investidores internacionais - características que uma desdolarização mal coordenada poderia amplificar. Nossa economia ainda depende significativamente de financiamento externo em dólares: empresas brasileiras possuem aproximadamente 120 bilhões de dólares em dívida externa denominada na moeda americana, segundo dados do Banco Central.

Uma desdolarização abrupta ou mal coordenada poderia complicar dramaticamente o refinanciamento dessas obrigações, aumentando custos de capital e criando pressões deflacionárias na economia doméstica. Além disso, a redução da demanda global por dólares poderia paradoxalmente fortalecer outras moedas mais que o real, comprometendo nossa competitividade exportadora - um risco que deve ser monitorado constantemente.

6.5. Visão do Banco Central do Brasil e estratégias de diversificação

O BCB tem mantido uma postura caracteristicamente cautelosa e técnica, reconhecendo tanto as oportunidades quanto os riscos inerentes à desdolarização. A instituição participa ativamente de discussões sobre pagamentos em moedas locais e sistemas alternativos de liquidação, mas evita comprometimentos que possam comprometer a estabilidade monetária conquistada com tanto esforço nas últimas décadas.

A estratégia de diversificação das reservas tem sido gradual e prudente, aumentando progressivamente a participação de euros, yuans e ouro, mas mantendo o dólar como âncora principal do sistema. Essa abordagem reflete uma compreensão realista de que mudanças estruturais no sistema monetário internacional levam décadas, não anos, para se materializar completamente - uma lição que a história financeira brasileira ensina com clareza.

7. Cenários Futuros e Implicações para Traders

7.1. Cenário mais provável: multipolaridade gradual com supremacia do dólar

O cenário mais provável para os próximos 5-10 anos não é a substituição dramática do dólar, mas sim uma evolução gradual para um sistema monetário internacional mais multipolar - uma transição que criará tanto oportunidades quanto desafios para operadores brasileiros. O dólar manterá sua posição dominante global, mas outras moedas ganharão participação crescente em nichos específicos do comércio global, criando uma paisagem mais complexa e diversificada.

Esperamos ver o yuan fortalecendo-se consistentemente no comércio asiático, especialmente em commodities energéticas e metálicas. O euro pode recuperar terreno perdido em transações intra-europeias e com parceiros mediterrâneos e africanos. Moedas regionais como o real podem ganhar relevância significativa em seus respectivos contextos geográficos, especialmente na América Latina. Essa multipolaridade gradual criará oportunidades de arbitragem e diversificação que traders atentos podem explorar. 

A projeção para 2030 ilustra como a diversificação monetária pode evoluir de forma gradual, mantendo o dólar dominante mas criando espaço para outras moedas - um cenário que oferece tanto oportunidades quanto riscos para investidores.

Projeção da Composição das Reservas Cambiais Globais (2030)

7.2. Oportunidades e riscos para operadores de forex

Para traders brasileiros, esse ambiente de transição criará oportunidades significativas, mas também riscos proporcionais que exigirão maior sofisticação e gestão de risco. A maior volatilidade esperada em pares de moedas emergentes oferecerá chances de lucro substanciais para operadores experientes, mas também aumentará dramaticamente os riscos de perdas significativas para quem não estiver adequadamente preparado.

Pares como USD/CNY, EUR/CNY e BRL/CNY provavelmente experimentarão maior volume de negociação e volatilidade intradiária. Correlações tradicionais entre moedas podem se alterar significativamente à medida que novos fluxos comerciais se estabelecem e antigos padrões são quebrados. Traders precisarão adaptar suas estratégias para capturar essas mudanças estruturais, possivelmente desenvolvendo maior expertise em análise fundamental macroeconômica complementar à análise técnica tradicional.

7.3. Estratégias de hedge e diversificação cambial

Empresas brasileiras e investidores precisarão repensar fundamentalmente suas estratégias de hedge cambial para navegar efetivamente neste novo ambiente. A diversificação em múltiplas moedas se tornará não apenas recomendável, mas essencial, especialmente para companhias com exposição significativa a mercados emergentes ou cadeias de suprimento globais complexas.

Instrumentos como swaps cambiais em moedas locais, contratos a termo em yuans e estratégias de hedge natural através de operações comerciais em múltiplos países ganharão relevância crescente. O desenvolvimento gradual de mercados de derivativos em moedas alternativas oferecerá novas ferramentas para gestão de risco, mas também exigirá maior sofisticação técnica e compreensão macroeconômica dos gestores de risco corporativo.

7.4. Indicadores-chave para monitoramento da desdolarização

Traders e analistas devem desenvolver disciplina para monitorar indicadores específicos que permitam acompanhar o progresso real da desdolarização, distinguindo entre movimentos temporários e tendências estruturais genuínas:

  • Composição trimestral das reservas cambiais globais (relatórios COFER do FMI) 
  • Volume mensal de transações nos sistemas CIPS, SPFS e outros alternativos ao SWIFT 
  • Participação de moedas alternativas no comércio global de commodities (dados setoriais) 
  • Emissão de títulos internacionais em moedas não-dólar (estatísticas do BIS) 
  • Novos acordos bilaterais de pagamento em moedas locais e seus volumes efetivos 
  • Políticas de bancos centrais sobre diversificação de reservas

8. Pragmatismo Versus Wishful Thinking

8.1. Síntese dos principais argumentos céticos

Nossa análise detalhada revela que, embora o movimento de desdolarização seja real, mensurável e crescente, os obstáculos para uma mudança fundamental no sistema monetário internacional permanecem formidáveis e provavelmente intransponíveis no curto e médio prazo. A liquidez incomparável dos mercados denominados em dólar, a estabilidade institucional americana consolidada ao longo de décadas e o poderoso efeito de rede estabelecido criam barreiras que não serão facilmente superadas por iniciativas isoladas ou mesmo coordenadas.

Os avanços observados - acordos bilaterais crescentes, sistemas de pagamento alternativos em desenvolvimento, crescimento gradual de moedas regionais - representam adaptações importantes dentro do sistema existente, mas não sua substituição fundamental. Mesmo os desenvolvimentos mais significativos, como o crescimento impressionante do CIPS chinês ou a diversificação das reservas por diversos bancos centrais, ainda operam em escalas consideravelmente menores que os sistemas tradicionais baseados em dólar.

8.2. Perspectivas realistas para os próximos 5-10 anos

Nos próximos 5-10 anos, nossa análise aponta para uma continuação da tendência atual: erosão gradual mas limitada da dominância absoluta do dólar, sem ameaça real à sua posição central no sistema financeiro global. A participação da moeda americana nas reservas globais pode continuar caindo gradualmente para cerca de 55%, mas permanecerá como a principal moeda de reserva mundial sem competição séria.

O comércio internacional se tornará progressivamente mais diversificado, com maior uso efetivo de moedas locais em transações bilaterais específicas, especialmente entre países emergentes com relações comerciais densas. Contudo, o dólar continuará sendo a moeda de denominação preferencial para a vasta maioria das transações internacionais complexas, financiamentos de longo prazo e contratos de commodities globais. Essa evolução criará oportunidades para traders atentos, mas não revolucionará o sistema financeiro global.

8.3. Recomendações para investidores e formuladores de política

Para investidores brasileiros, nossa recomendação é clara: diversificação cautelosa e gradual, aproveitando as oportunidades emergentes sem apostas radicais contra o dólar. Posições estratégicas em moedas emergentes podem ser lucrativas no médio prazo, especialmente em pares relacionados ao comércio bilateral crescente, mas devem ser cuidadosamente balanceadas com a realidade de que o dólar permanece como o porto seguro preferencial em tempos de crise global.

Para formuladores de política brasileiros, o caminho mais prudente é continuar participando ativamente de iniciativas multilaterais de desdolarização enquanto mantêm rigorosamente a estabilidade macroeconômica doméstica. Movimentos unilaterais precipitados poderiam comprometer nossa credibilidade no sistema financeiro global sem benefícios compensatórios claros. A paciência estratégica e o pragmatismo, características tradicionais da diplomacia brasileira, servem-nos bem neste contexto.

8.4. Reflexões finais sobre a resiliência do sistema dólar

A história financeira nos ensina uma lição fundamental sobre a inércia dos sistemas monetários estabelecidos: eles possuem uma capacidade de adaptação e resistência que frequentemente surpreende mesmo observadores sofisticados. A libra esterlina manteve sua dominância global por décadas após o declínio econômico relativo do Império Britânico. O dólar, apoiado pela maior economia do mundo, pelas instituições financeiras mais profundas e líquidas do planeta, e por uma capacidade demonstrada de adaptação a crises, provavelmente demonstrará resiliência similar ou superior.

Isso não significa que mudanças não ocorrerão - elas já estão acontecendo diante de nossos olhos. Mas significa que essas mudanças serão graduais, parciais e provavelmente levarão décadas para se materializar completamente em qualquer forma que desafie seriamente a centralidade do dólar. Para traders e investidores brasileiros, a chave é reconhecer essas tendências de longo prazo sem sucumbir ao wishful thinking de que uma revolução monetária global está à nossa porta. A sabedoria está em navegar as mudanças graduais com disciplina, diversificação inteligente e, acima de tudo, respeito pela complexidade inerente aos sistemas financeiros globais.

9. Referências

  • Banco Central do Brasil. Relatório de Gestão das Reservas Internacionais - 2024. Brasília: BCB, 2024. Disponível aqui
  • Fundo Monetário Internacional (FMI). Currency Composition of Official Foreign Exchange Reserves (COFER) - Fourth Quarter 2024. Washington: IMF, 2025. Disponível aqui
  • Banco de Compensações Internacionais (BIS). Triennial Central Bank Survey of Foreign Exchange and Over-the-counter (OTC) Derivatives Markets in 2022. Basel: BIS, 2022. Disponível aqui
  • CNN Brasil. "Brasil já possui 124 bilhões de iuans em reservas internacionais". CNN Brasil, 2 de dezembro de 2024. Disponível aqui
  • Monitor Mercantil. "Banco dos Brics impulsiona substituição do dólar com meta de 30% em moedas locais". Monitor Mercantil, 31 de março de 2025. Disponível aqui
  • ICL Notícias. "Bancos centrais do Brasil e da China firmam acordo de swap". ICL Notícias, 14 de maio de 2025.
  • Expresso. "Banco dos BRICS começa a emprestar em rands e reais". Expresso, 10 de outubro de 2024.
  • Monitor do Oriente. "25 países se juntam ao sistema de pagamento da Rússia como alternativa ao SWIFT". Monitor do Oriente, 4 de abril de 2025.
  • Jovem Pan. "Dívida externa do Brasil cai para US$ 361,86 bilhões em novembro". Jovem Pan, 23 de dezembro de 2024.
  • Estadão. "Quais são os países com as maiores reservas internacionais do mundo? Qual é a posição do Brasil?". O Estado de S. Paulo, 14 de abril de 2025.
  • InfoMoney. "Força do dólar em transações globais é questionada, mas substituição é considerada improvável". InfoMoney, 13 de abril de 2023. Disponível aqui
  • Brazil Journal. "BC ganha prêmio por gerir bem as reservas — usando até ETFs". Brazil Journal, 4 de abril de 2023.
  • InvestNews. "'Desdolarizar' comércio entre Brasil e China reduz custos, mas eleva riscos". InvestNews, 15 de abril de 2023.
  • ICL Notícias. "Reservas internacionais atingem maior patamar em 5 anos". ICL Notícias, 4 de novembro de 2024.
  • Brasil 247. "Fim do petrodólar acelera desdolarização, abala hegemonia do dólar e viabiliza novo sistema monetário global". Brasil 247, 24 de junho de 2024.
  • Migalhas. "Política econômica da China nas negociações com o Brasil". Migalhas, 25 de maio de 2025.
  • UFRGS - Jornal da Universidade. "Desdolarização representa quebra de paradigma nas trocas comerciais globais, mas não rompe relações de subserviência". Jornal da Universidade, 20 de março de 2025.
  • Gazeta do Povo. "O que é o Swift, o sistema que vai ser usado como sanção contra a Rússia". Gazeta do Povo, 27 de fevereiro de 2022. Disponível aqui
  • Monitor Mercantil. "Cips, a alternativa chinesa ao sistema de pagamentos Swift". Monitor Mercantil, 25 de fevereiro de 2022.
  • Masfra Pay. "CIPS | O que é e como pode afetar o mercado de câmbio". Masfra Pay, 13 de fevereiro de 2024.
  • Paulo Gala / Economia & Finanças. "Como o banco central brasileiro acumulou reservas nos últimos 20 anos?". Paulo Gala / Economia & Finanças, 15 de agosto de 2023.
  • Ebury - Câmara Portuguesa. "O aumento da participação do CNY no mercado de câmbio". Ebury, 25 de abril de 2023.
  • Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. "Composição e alocação de moedas das reservas internacionais: evidências do Brasil". São Paulo: USP, 25 de abril de 2022. Disponível aqui
  • CEIC. "Brasil | Dívida Externa | 1999 – 2023 | Indicadores econômicos". CEIC Data. Disponível aqui
  • Brasil Escola. "Dívida externa do Brasil: qual é, valor hoje". Brasil Escola. Disponível aqui
  • Prasad, Eswar S. O Futuro do Dinheiro: Como a Moeda Está Mudando o Mundo. Tradução de Ricardo Mielli. São Paulo: Alta Books, 2022. Disponível aqui


keywords: desdolarização do comércio internacional, impacto desdolarização Brasil, futuro do dólar mundial, hegemonia do dólar americano, yuan moeda de reserva, comércio Brasil China yuan, BRICS e desdolarização, sistema SWIFT alternativas, reservas cambiais Brasil diversificação, economia brasileira sem dólar, real brasileiro desdolarização, acordos bilaterais moedas locais, transações internacionais sem dólar, supremacia dólar global, cenários futuros desdolarização, oportunidades forex desdolarização, riscos desdolarização economia, multipolaridade monetária gradual, yuan no comércio internacional, CIPS sistema pagamento chinês, dólar como arma econômica, substituição do dólar impossível, liquidez mercados dólar, confiança institucional EUA dólar, efeito de rede dólar, moedas emergentes no comércio, autonomia financeira países emergentes, sanções aceleram desdolarização, CBDC e desdolarização, crescimento do yuan global, redução participação dólar comércio, obstáculos à desdolarização, benefícios desdolarização para Brasil, trading moedas emergentes, hedge cambial desdolarização, indicadores monitorar desdolarização


Postar um comentário

Artigo Anterior Próximo Artigo